Existem alguns filmes onde o todo é muito maior que a soma das partes. Não que as partes não sejam boas, mas é que certos filmes têm, dentro de si, algum tipo de mágica que faz com que as pessoas se apaixonem por ele. Ao analisar as partes, é possível ver alguns indícios do que há de bom ou atraente naquele filme, mas ainda assim permanece um mistério. Esse é o caso de "3 Idiots", talvez o filme com maior índice de "conversões" para o cinema indiano que já vi.
O cinema indiano, dada a falta de informações que existe no Brasil, é vítima de uma visão estereotipada. Como na Índia há quase dois mil filmes sendo feitos por ano, não existe dúvida que existe nesse país uma grande variedade de possibilidades, de gêneros e propostas, e, principalmente, de graus de qualidade acerca dos filmes feitos. No entanto, a face mais comercial é, muitas vezes, a única que aparece e nela, os filmes possuem algumas características específicas (não todos, mas uma grande parte).
Por exemplo, muitos deles misturam gêneros de maneira heterogênea, o que caracteriza o que é chamado de "Masala". Há também uma vontade imensa de atingir o público indiano, não importa como, através dos meios mais sutis ou grosseiros. Isso inclui: personagens caricatos, números musicais, simplificação de conflitos complexos, melodrama excessivo, romantismo, cenas de ação feitas para chamar a atenção, overacting, trama derivativa ou, digamos, influenciada por clichês que dão certo e etc.
É claro que existem inúmeros filmes indianos onde não há nada disso que citei anteriormente, mas... há outros onde isso existe até em excesso, o que acaba dando, a quem não conhece, uma visão redutiva do cinema indiano. Talvez o grande trunfo de "3 Idiots" seja o fato de que ele flerta o tempo todo com tudo que o cinema indiano faz para chamar atenção de seu público, todos os "truques" para cativar as pessoas e, no entanto, sobrevive, não como filme comercial, mas, simplesmente, como obra de arte.
Vamos para a história. Ela se divide em presente e passado. No presente, Farhan e Raju são dois indianos bem sucedidos. Um é fotógrafo e outro tem um belo emprego em uma empresa. No entanto, uma aposta feita dez anos antes, faz com que Farhan relembre o tempo que passou na faculdade de engenharia. Naquela época, ele queria ser um fotógrafo, mas, por pressão dos pais, estudava engenharia. Já seu amigo Raju era um rapaz pobre e pouco autoconfiante, tentando melhorar de vida. A vida dos dois muda radicalmente quando eles se deparam com Ranchoddas, mais conhecido como "Rancho", um aluno inteligentíssimo, mas que defende ideias que não são aceitas pelo reitor da universidade, Viru Sahastrabuddhe. Mais importante do que decorar é aprender. Mais importante do que ser bem sucedido é usar sua inteligência para alcançar a felicidade. A inimizade entre Rancho e Viru é instantânea, e não só com ele, com Chatur também, um aluno que só pensa em ser bem sucedido e em ganhar dinheiro. A resistência de Rancho em mudar suas convicções inspira Farhan e Raju e os dois se beneficiam com essa amizade.
A questão é que, depois da faculdade, os dois nunca mais viram Rancho. Mas, uma aposta que Chatur fez com ele, de que todos se encontrassem para ver quem seria o mais bem sucedido do grupo em dez anos, faz com que Farhan, Raju e Chatur se empenhem em encontrar o velho conhecido anos depois. Chatur, inclusive, é um bom exemplo do que "3 Idiots" tem de bom. Aparentemente, no começo, vemos ele apenas como um "papagaio" das ideias mais preconceituosas em relação à educação. De que estudar só serve para que você ganhe dinheiro e de que ser "bem sucedido" é a única régua ao qual uma pessoa deve ser exposta.
Mas o personagem tem uma cena muito boa, em que, de forma brilhante, seus defeitos são escancarados. Em uma apresentação, ele decide falar seu discurso em hindi clássico. O problema é que ele não sabe hindi clássico e decora um texto. O texto, no entanto, foi sabotado por Rancho e ele acaba falando palavrões e besteiras sem sentido, enquanto a classe inteira ri dele e o reitor se constrange com a trapalhada. O que se mostra uma boa cena, abre espaço para algo melhor: a descoberta das motivações de Chatur.
Mais tarde, ele encontra Rancho, Farhan e Raju e fica bem claro para o público o problema de Chatur. Ele veio da Uganda, não é um nativo da Índia. É como se ele quisesse compensar sua alienação em relação aos outros alunos e, até, se sentir superior a eles, seguindo esse "código de honra" disciplinar rígido e unidimensional em relação ao poder do ensino e da educação. No caso dele, o dinheiro compensa a solidão. Se "3 Idiots" fosse um filme medíocre, todos se abraçariam e tudo acabaria por aí mesmo, como se problemas tão complexos pudessem ser resolvidos com o estalar de um dedo.
No entanto, não é o que acontece. A raiva de Chatur é tão grande (e sua convicção em seu, digamos assim, "ideal") que, nesse mesmo momento, ele firma uma aposta com os três inimigos. Eles irão se encontrar 10 anos depois, para ver quem se saiu melhor na vida (e para Chatur, sair-se bem quer dizer ganhar dinheiro e posições no mundo corporativo). O filme, nesse momento, ao dar ao seu antagonista uma motivação tão realista e pungente, mostra para o que veio. Não há saída fácil ou redenção. O conflito vai ter que ir até o fim. Chatur não é um idiota, e, assim como Rancho, ele também representa uma ideia com toda sua força. Como o filme é uma comédia, sabemos quem vai se dar mal no final, mas ainda não sabemos como. Só para terminar o resumo, dez anos depois, Chatur é vice-presidente de uma corporação multinacional. E Rancho, no que ele se transformou? Essa pergunta é o que move Farhan, Raju e Chatur, enquanto eles se lembram de suas peripécias na universidade.
"3 Idiots" pega tudo que você imagina que pode ter em um filme indiano e transforma em ouro. Os personagens caricatos são caricatos como em um romance de Dickens, não como em um filme medíocre. O overacting funciona e se torna engraçado. Os números musicais têm canções boas e servem a narrativa. O melodrama e comédia funcionam do jeito mais simples ao mais complexo e os clichês são transformados através de pequenos detalhes. Rajkumar Hirani pega tudo que poderia ter em um filme medíocre e transforma em algo quase perfeito. Não é à toa que 3 dos seus filmes estão entre as 15 maiores bilheterias de todos os tempos da Índia. Em termos de bilheteria ele é meio que um Steven Spielberg indiano, com filmes custando de 10 a 15 milhões de dólares e arrecadando de 90 a 140 milhões.
É possível fazer filmes bons fugindo de certos clichês característicos do filme indiano mais popular, mas Rajkumar mostra que também é possível fazer filmes extraordinários jogando com tudo que o cinema indiano mais popular incorporou em seu cardápio. E esse é o grande trunfo de "3 Idiots".
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