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Guide (1965)

     

     Apesar desse filme ser muito estimado, me suscitou dúvidas, principalmente com a segunda metade. Ao contrário da reação que tive ao ver "Mughal-E-Azam" e "Sholay". Mas primeiro deixa eu lhes dar um resumo da história. Raju é um guia turístico que encontra um casal peculiar: Marco e Rosie. Ele é arqueólogo e quer ser levado para uma caverna onde fará suas pesquisas. E Rosie é sua mulher, alguém que está extremamente insatisfeita com o casamento, pois foi um casamento de conveniência e seu marido não deixa ela perseguir seu sonho: tornar-se uma dançarina profissional.
     Durante a estada do casal na cidade de Raju, o relacionamento dos dois se deteriora a tal ponto que Rosie sai de casa e pede abrigo para Raju. Raju acolhe Rosie, sofrendo retaliações da população local, seus amigos e até de sua mãe e de seu tio, que não gostam de Rosie, pois ela é filha de uma prostituta e foi vendida para Marco. Enfrentando as adversidades, Raju ajuda Rosie a se tornar uma famosa dançarina, Miss Nalini. No entanto, o relacionamento dos dois também deteriora e ele comete um erro (que não vou falar qual é), indo parar na cadeia. 
     Quando sai, vai para uma pequena cidade, Mangala, onde é confundido com um homem santo. Ele não faz questão de desfazer o mal entendido e ajuda a vila a melhorar, tornando-se ainda mais adorado pelas pessoas. No entanto, nesse meio tempo, acontece uma seca infernal e, sem querer, ele acaba se comprometendo a fazer um jejum de 12 dias para atrair chuva. Mesmo sabendo que não é um homem santo, Raju não consegue desfazer a promessa que fez para a vila, colocando-se em uma situação complicada. A questão é: a chuva virá ou ele irá morrer?
     Devo dizer que a história é interessante, e a primeira metade do filme me pareceu ótima. Apesar de Marco ser um personagem unidimensional, Raju e Rosie são personagens muito empáticos e seus conflitos, interessantes. Há muito material narrativo a ser trabalhado, o que faz com que haja menos músicas nesse momento. Meu interesse, no entanto, começou a arrefecer um pouco na segunda metade do filme, principalmente por que é nesse ponto que se mostra o início de um certo tédio que se cria entre Raju e Rosie, tédio que irá acabar por destruir o relacionamento dos dois. Infelizmente, as situações nesse ponto da história são menos interessantes, o que, não por acaso, aumenta o número de cenas musicais do filme. Parece que a distribuição de canções na história é meio desequilibrada justamente pelo fato da narrativa ser meio desequilibrada. 
     Mais para frente, ocorre algo mais grave. Ao contrário do original literário de R. K. Narayan, que, segundo se conta, tinha um final ambíguo, a parte final do filme não tem ambiguidade nenhuma em relação aos fatos (que não irei contar quais são, pois seriam spoilers) ou mesmo em relação ao significado desses fatos. O próprio autor do livro, em um artigo escrito para a revista Life, "The Misguided Guide", criticou o filme por causa disso. Devo dizer que concordo com ele nesse caso. O filme poderia ter sido muito mais sutil no modo como tratou a história desse "homem comum que se transforma em santo". No original literário muita coisa fica em aberto, no filme tudo se fecha e isso realmente me incomodou.
     Apesar disso, "Guide" é um edifício que permanece de pé, ainda é um bom filme. No entanto, não consigo dar mais que 3 estrelas para ele, pelas razões que já foram expostas. Acredito que ele ainda é tão estimado por uma razão cultural secundária, mas que se tornou principal: Rosie é considerada um exemplo de mulher rebelde e emancipada, dentro de uma sociedade preconceituosa. O fato dela ter saído de casa e de um casamento (anos 60 na Índia) e ter procurado a felicidade profissional sem ter necessariamente um homem ao seu lado foi algo bastante novo para a época, principalmente levando em consideração que, até o final, ela se mantém independente. Desde os anos 80 e 90 apareceram muitas mulheres rebeldes e independentes no cinema indiano, mas nos anos 60, isso realmente não era tão comum. O conflito de Raju, que é o protagonista, nesse caso, fica um pouco borrado comparado com o que os indianos gostaram de ver em Rosie. 
     Como mais um ponto positivo, devo dizer que a direção do filme foi bastante precisa e até imaginativa na primeira metade do filme, onde travellings bem colocados e movimentos circulares feitos com a câmera para filmar Rosie dançando dão ao filme uma dinâmica muito mais sofisticada do que existe em muitos dos filmes do cinema indiano dessa época. E Dev Anand, como Raju, é sempre um personagem com quem você pode se identificar, apesar do uso de monólogos com voz over para explicar o que ele está pensando não funcionarem muito bem, principalmente quando tentam deixar "tudo muito bem explicadinho". De qualquer jeito, um filme a se conferir, mesmo se for para suscitar algumas reservas depois.
  

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