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Veerana (1988) - A Índia tem seu Zé do Caixão: são os Irmãos Ramsey!

     
     Alguns filmes indianos causam um efeito parecido a você ser convidado para assistir um jogo de futebol de regras muito específicas. Em linhas gerais, o jogo permanece o mesmo. Você tem a bola, o campo, dois times, 22 jogadores... mas, continuamente, alguma coisa parece estranha e diferente, a ponto de fazer você acreditar que não é o mesmo jogo. Ao analisar melhor aquilo tudo, no decorrer do tempo, você descobre que, do mesmo jeito que o "seu" jogo de futebol, esse aqui também tem regras muito claras e diretas, apenas elas não lhe foram comunicadas de antemão. Resta-lhe, por fim, saber se, com o tempo, em sua mente, aquilo tomará a forma de algo claro e sólido. Se tomar, você foi fisgado, se não, o filme não é para você. Ou... você apenas precisa de mais tempo.
     Os Irmãos Ramsey começaram a fazer filmes em 1972 com "Do Gaz Zameen Ke Neeche", embora no IMDB esteja escrito que há um filme anterior chamado "Nakuli Shaan" (do qual não tenho nem certeza se existe mesmo, depois vou confirmar). Eram 7 irmãos, sendo que dois deles, Tulsi e Shyam, dirigiam os filmes. Os outros atuavam em várias outras funções dentro da "fábrica" que montaram. Na verdade, o pai deles, F. U. Ramsey, já fazia filmes, mas não com o destaque que seus filhos conseguiram ao adotar um caminho pouco percorrido pelo cinema indiano: o do cinema de horror. A cronologia é a seguinte: nos anos 70, eles se consolidaram, nos anos 80 veio a fama, quando "Purana Mandir" chegou a ser o segundo filme mais visto na Índia naquele ano. E, nos anos 90 eles invadiram a TV indiana, com o show "The Zee Horror Show". Nesse sentido, não há como não lembrar do nosso Zé do Caixão ao pensar nos irmãos Ramsey. Há uma certa similaridade com a qual, apesar de serem "avis raras" em seus ambientes, eles conseguiram atingir o sucesso. E também no modo como seus filmes, até no conteúdo, indicarem uma certa consistência em como um cinema de horror em um país subdesenvolvido pode chegar a atingir a fama
     Isso porque o método usado por ambos é parecido. Mistura-se influências do cinema de horror clássico americano com a cultura local. Essa mistura, por si só, é estranha, então, além da estranheza já presente no gênero do horror (que lida com situações difíceis de acreditar), temos outra fonte de estranheza: elementos culturais que não existem nas fontes primárias desses filmes. Considerando o baixo orçamento dos filmes, isso pode lhes dar uma aspecto meio mambembe, embora isso espante apenas aqueles que estão preocupados com os clichês do bom gosto e não com o CINEMA. Mas há algo mais nos filmes desses irmãos cineastas e é por isso que esse post foi escrito.
     Esse algo mais é a presença de uma mistura heterogênea de elementos que, no ocidente, não é costume de acontecer. É a presença, no filme, de influências do gênero "Masala". No caso de Veerana, você tem várias cenas que evocam o horror clássico, como a cena presente na foto do post. Alguns dos momentos são especialmente eficientes. No entanto, o filme apresenta uma variedade muito grande de coisas acontecendo, que transcendem as cenas de horror. Influências da cultura e do folclore indiano abundam, principalmente porque cenas que evocam o passado histórico indiano estão presentes. Outro aspecto interessante é a presença de um personagem chamado "Hitcock" (é escrito dessa forma mesmo), um aficionado por suspense e horror, um alívio cômico que, toda vez que aparece, mesmo nas situações mais tensas, faz com que o filme se torne uma paródia de si mesmo.
     Há cenas musicais e, para falar a verdade, variações em torno do gênero suspense e horror. Em alguns momentos, privilegia-se o suspense, em outras, o horror. Algumas cenas são mais sutis no modo como isso é criado. Em outras, tudo é feito de forma extremamente grosseira. Há espaço até para um pouco de surrealismo, como no espaço em que habita o vilão da trama, uma caverna onde, numa mesa esotérica, se distribuem seres sentados ao redor de uma mesa circular. Esses seres possuem cabeças gigantescas que mais parecem meniscos ou pedras gigantes. E eles ficam o tempo todo se balançando. O fato de, ao contrário dos filmes ocidentais, serem enfocadas divindades, mas que não tem nada a ver com Deus e o Diabo, realmente cria um clima de estranheza e, até, loucura, que pode se tornar bastante interessante se o espectador tiver a cabeça aberta. Ou seja, nos filmes dos Ramsey existe uma terceira camada de estranheza que bagunça ainda mais a cabeça de quem quer um simples filme de horror. E esse, com certeza, não é um simples filme de horror...
     Para se ter uma ideia da história: Baba é um feiticeiro que serve uma bruxa poderosa chamada Nakita, que mata e suga a energia de homens capturados por ele. Perto de onde isso acontece, vive uma família. O pai, Mahendra, é um membro destacado da comunidade e fica preocupado com os desaparecimentos na área. Ele descobre que existe essa tal bruxa e seu irmão Sameer empreende uma "caça às bruxas". Apesar de serem parcialmente sucedidos, em um ataque final à caverna onde a bruxa se esconde, Sameer é morto pelos homens de Baba. E Jasmine, filha de Mahendra, é possuída pelo espírito de Nakita. Baba, disfarçado, leva Jasmine de volta para a casa de Mahendra e se passam 12 anos sem que a possessão seja descoberta. Durante esse tempo, Jasmine, possuída por Nakita, se acostumou a atrair homens para depois mata-los. O que precipita uma virada na história é a chegada de Sahila, filha de Sameer, junto de seu namorado, Hemant. Ela havia ido embora depois da morte do tio, mas agora, voltou. Eles irão perceber que há algo de errado com Jasmine e darão início ao desmascaramento da bruxa.
     Hoje em dia, há uma grande quantidade de filmes que usam o suspense sobrenatural ou o horror na Índia, mas, sem dúvida, os Ramsey foram pioneiros. Como muitos pioneiros, pode-se notar em seus filmes que os orçamentos eram baixos e a sutileza pequena. Mais preocupados em atingir o público, os Ramsey podem ser acusados de terem a mão pesada e de usarem truques baratos para cativar o público, mas nunca de não terem imaginação ou de suas narrativas não serem divertidas. Aliás, eles usam de um arsenal de possibilidades para chamar a atenção do público, coisa que faz com que seus filmes tenham uma grande qualidade: por bem ou por mal, você não se chateia. E, talvez, até se divirta.




     

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