Pular para o conteúdo principal

Meri Aawaz Suno (1981) - É Tarantino, Dirty Harry, Charles Bronson, "Justiça para Todos" ou "Taxi Driver"?

     Meri Aawaz Suno é um marco do cinema indiano. Antes de ser lançado, esperava-se que iria causar muita polêmica. Tanto que os realizadores localizaram a trama em um "país imaginário" chamado Mindustan (ao invés de Hindustan) para tentarem não se comprometer tanto. No entanto, mesmo assim, a forte crítica feita aos agentes da lei e do judiciário no filme suscitaram inúmeras reações negativas na Índia. A reação foi menos radical que a suscitada por Antha (Fim), o filme falado em Kannada, dirigido pelo mesmo diretor, que deu origem a Meri Aawaz Suno. No caso de Antha, os jornais se encheram de cartas pedindo a retirada do filme dos cinemas e os censores se sentiram enganados, já que só foi mostrada somente a primeira metade para eles. No caso de Meri Aawaz Suno, apesar do buchicho, ou por causa dele, o filme foi um sucesso. E aí é que eu queria chegar. 
     Embora, para um espectador de hoje em dia e brasileiro, outras coisas possam se destacar mais, como o problema da corrupção na Índia, as práticas ilegais cometidas e o modo como as autoridades se safam de qualquer tipo de punição, o que chama mais atenção no filme é a diferença radical que existe entre a primeira e a segunda metade. É um ponto fortíssimo de Meri Aawaz Suno (que quer dizer em português: Ouça a minha voz): a sua progressão é implacável. E quando mostra para o que veio, pode se tornar hipnótico.
     À primeira vista, o filme parece um policial razoavelmente normal. A história foca Sushil Kumar, um membro da força policial indiana, que é designado para se infiltrar em uma gang se fazendo passar por um criminoso chamado Kanwarlal. Nos primeiros trinta minutos, vemos ele dividindo uma canção com sua mulher (que irá ter um filho) e, apesar da trama de thriller temos espaço para um personagem coadjuvante que faz papel de "alívio cômico" por ter muito medo de Kanwarlal. Ficamos imersos em um filme policial do qual esperamos alguma violência, mas, tudo leva a crer, como em filmes americanos desse tipo, que, no final, o investigador irá cumprir sua missão e todos iremos felizes para casa.  
     Sushil se infiltra na gang, depois de passar alguns testes e engana até o pai de Kanwarlal. Importante falar que são mostradas, enquanto isso, cenas de sua vida de classe média, com sua mulher Sunita e sua mãe. Além de ficarmos sabendo que Sushil tem uma irmã, chamada Shobbha, que já não vive com eles, mas que será importante para uma das sequências-chave do filme, que acontece na metade. O tom muda repentinamente. Sushil vai até uma pequena "festinha" da gang dos "homens maus", vestidos de terno, mas com camisas sociais abertas no peito, mostrando desconfortáveis pelos (Ah, anos 70 e 80...). 
     Uma mulher entra na sala, com o intuito de dançar para eles (normalmente, em privado, não apenas dança como faz outras coisas). Quando o próprio Sushil tira o véu dela, descobre que a mulher é sua irmã Shobbha. Sem que seu irmão soubesse, ela se tornou escrava dos criminosos. Segue-se uma sequência musical, onde o subtexto é claro. Shobbha está humilhada e constrangida, enquanto Sushil não consegue conter a tristeza de ver a irmã em uma situação como essa. Sushil quebra um espelho gigante que há na sala e Shobbha dança sobre os cacos cortantes, fazendo seus pés sangrarem. No final da música, não há nem tempo para o público pensar em uma possível conversa entre os dois. Shobbha se joga pela janela e despenca vários andares até a morte. Meri Aawaz Suno nos dá um aviso com essa cena: não haverá redenção nesse filme. Mas o espectador ainda pode pensar: "A irmã dele não era tão importante assim para o filme, ainda existem a mãe e a mulher (que irá ter um filho)".
     Bem, não irei contar mais nada sobre esse departamento, mas esse é o filme de um homem que desce ao inferno. E a descida acontece em etapas, em cenários que merecem ser citados. Cenários coloridos, que o tempo todo contrastam com a sombria história que está sendo contada. Tal qual Sushil, que o tempo todo se mascara para se infiltrar na gang, os cenários coloridos se desdobram a nossa frente como se fosse um camaleão que não quer ser notado. O ambiente de Sushil e sua família tem uma decoração Kitsch colorida e de classe média. O ambiente da prisão é cinza, mas de um cinza muito expressivo e agradável ao olhar. E o ambiente luxuoso onde os criminosos e corruptos se esbaldam possuem linhas geométricas e riqueza, como se fossem "art decó", mas não há elegância, nem equilíbrio. No final, as cores expressivas fazem com que o ambiente pareça uma "art decó kitsch". Mas por que falo sobre isso? Pois na meia hora final tudo isso muda. Pela primeira vez, tudo fica sombrio, iluminado por contraste. E a escuridão se torna importante. Tanto na sala onde Sushil é torturado quanto na casa de seu chefe, Sangram Singh, as faces e corpos são vistos através de suas silhuetas, não possuindo muita definição. E, quando a luz volta, ela já não ilumina direito e as cores já não são tão fortes. Parece que Sushil nunca mais irá voltar para onde estava. A forma do filme demora um pouco mais que a narrativa para chegar ao "coração das trevas", mas, quando chega, não há mais volta: nem para o protagonista, muito menos para a sociedade indiana.
     O ápice desse processo acontece quando Sushil decide matar alguns homens supostamente intocáveis: juízes e até um ministro. Em alguns momentos, o cinema deixa de ser cinema e somos surpreendidos por fotos. Embora ouçamos o som daquilo que está acontecendo, as imagens não estão mais se movendo, como se a própria forma do filme tivesse se alterado graças à imensa raiva do protagonista, que irá cometer atos impensáveis. E, da mesma forma que, quando o cinema atinge o seu limite, ele volta à estaca zero (imagens paradas, congeladas no tempo), Sushil, quando atinge o ápice da violência e da revolta, também voltará à estaca zero. Deixando o filme em aberto, como se, agora, até mesmo a ficção tivesse se tornado insuportável demais para ser observada. Esse filme pode ser achado no Youtube com legendas em inglês.


  

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

3 Idiots (2009) - Esse filme converte qualquer um

     Existem alguns filmes onde o todo é muito maior que a soma das partes. Não que as partes não sejam boas, mas é que certos filmes têm, dentro de si, algum tipo de mágica que faz com que as pessoas se apaixonem por ele. Ao analisar as partes, é possível ver alguns indícios do que há de bom ou atraente naquele filme, mas ainda assim permanece um mistério. Esse é o caso de "3 Idiots", talvez o filme com maior índice de "conversões" para o cinema indiano que já vi.      O cinema indiano, dada a falta de informações que existe no Brasil, é vítima de uma visão estereotipada. Como na Índia há quase dois mil filmes sendo feitos por ano, não existe dúvida que existe nesse país uma grande variedade de possibilidades, de gêneros e propostas, e, principalmente, de graus de qualidade acerca dos filmes feitos. No entanto, a face mais comercial é, muitas vezes, a única que aparece e nela, os filmes possuem algumas características específicas (não todos, mas uma grande pa

Bajrangi Bhaijaan (2015)

     Bajrangi Bhaijan tem todos os elementos de um desavergonhado melodrama. Começando pelos personagens principais, Pawan e Shahida. Pawan é um homem pouco inteligente, mas nobre e forte, e irá enfrentar uma série de problemas para alcançar seu objetivo: levar Shahida para casa. Shahida é uma menina paquistanesa surda-muda que se perdeu da mãe em uma estação de trem na Índia e agora não tem mais como voltar. Para quem não sabe, Índia e Paquistão vivem em pé-de-guerra e, cruzar a fronteira sem permissão para ir a um lugar desconhecido (já que Pawan não sabe onde a garota mora), é jogar com a própria vida. Pawan, mesmo assim, decide empreender uma viagem até o Paquistão para levar Shahida até seus pais, lugar onde será perseguido pela polícia paquistanesa, com a suspeita de que ele seja algum tipo de espião do governo indiano. Mas (isso não é nenhum spoiler) nada disso o impedirá de seguir em frente, já que ele é, claramente, um herói.       A narrativa vem embalada no estilo &q